Entenda como Veneza foi construída

Veneza figura em livros de artes e história, quando o foco está nas grandes obras de arquitetura e artes visuais que a cidade carrega, ou quando há interesse nas divergentes e lendárias narrativas que dizem respeito à sua origem. Nos livros de ficção, a áurea calma de seus canais, as pequenas vielas, as cores e texturas de sua paisagem são plano de fundo para uma miríade de histórias imaginadas.



Apesar disso, Veneza é uma cidade que não se revela de imediato a um olhar desatento de passagem. Ao contrário do que sugere o alto fluxo de turismo de curta permanência que percorre o perímetro da Praça de São Marco em poucas horas e posa para uma foto com a vista da Ponte do Rialto, trata-se de uma cidade com inúmeras situações de interesse, edifícios e coleções artísticas impressionantes, uma população local resistente, tradições que buscam seu espaço de reafirmação, e uma história que fala de uma verdadeira empreitada técnica, isto é, construir uma cidade em um pântano, feito que rende à cidade um lugar em mais uma seção das bibliotecas: a de engenharia.



O relato preciso dessa história retoma o contexto do território que hoje conhecemos como a Itália no século V. Em meio à constante ameaça das guerras de expansão que colocavam em risco o norte desse território, a população se viu coagida a encontrar um novo local para a fundação de uma cidade que pudesse garantir isolamento e segurança em relação a este cenário. Do leste, vinha Átila com seu exército de hunos na empreitada de tomar a Europa central. Cem anos mais tarde, a pressão continuava imposta pelos povos eslavos e lombardos que tomavam direção para o norte. Foi esse contexto de verdadeiro cerco territorial que justificou a escolha por um lugar tão inóspito e aparentemente impossível de ocupar.




A laguna situada entre a terra firme e o Mar Adriático parecia representar um espaço seguro, que dificilmente seria acessado pelo invasor. No entanto, fundar uma cidade representava um desafio enorme em uma região pantanosa com pouquíssimas áreas secas, completamente tomada pela água e suas dinâmicas próprias. Àquela altura, sem dúvidas, a água era o problema a se enfrentar, o maior obstáculo para a consolidação de qualquer ocupação. Para isso, recorrendo a técnicas de antigos produtores de sal, os primeiros envolvidos com a fundação da cidade elegiam porções de terra seca sobre a água (pequenas ilhotas) próximas umas às outras e, no seu perímetro comum, delimitavam quadrantes com estacas de madeira colocadas muito rentes entre si. Essa técnica de recuperação de terra permitia secar as áreas demarcadas no pântano a partir da escavação de canais que permitiam o escoamento da água, estabelecendo, assim, as condições mínimas para a construção.



Com sua superfície drenada, a área seca era nivelada com terra e se obtinha uma ilhota que poderia receber, por exemplo, casas. O desenvolvimento dessas pequenas unidades territoriais isoladas foi um processo que levou alguns séculos de trabalho e aperfeiçoamento técnico até que, no século XV o conjunto tonara-se um arquipélago de cerca de 120 km², composto por 117 ilhotas cortadas pelos 400 km de canais. De um espaço de resistência temporário, Veneza se tornara uma cidade permanente. Cada uma dessas ilhotas se organizava com um referencial tradicional da idade média, com uma igreja e praça central rodeadas por casas.




O novo grande desafio referia-se à fundação desses edifícios que, mais uma vez, precisavam confrontar-se com a presença da água como uma constante. A solução adotada foi a de fundação com pilares de madeira, de forma que, um conjunto de peças distribuídas em toda a extensão da área a ser ocupada preenchia o terreno e entrava em contato com a camada rígida de solo de pedra embaixo d'água, no fundo do canal, que tem em média 5 metros de profundidade. A presença do barro nas profundezas gerava uma reação química com a madeira e, isolando a mesma do contato com o oxigênio, fossilizava as peças, criando uma base impermeável e resistente para a edificação. A respeito dessa estratégia, é esclarecedor imaginar que Veneza, se virada de cabeça para baixo, pareceria uma densa floresta de pilares de madeira em toda sua extensão construída.



Uma vez estabelecida a primeira camada, no topo dessas peças era assentada uma camada dupla de tábuas de madeira para nivelar o chão e distribuir o peso do futuro edifício. Por cima disso, como um afloramento da fundação, colocava-se algumas camadas de pedra ístria, originária da região, que contribuía sendo mais uma camada de impermeabilização, protegendo o edifício contra infiltrações pela variação do nível da água nos canais. A partir daí, o desenvolvimento vertical das construções era na maioria dos casos feito em tijolo, material predominante da paisagem veneziana até hoje.



Mais uma vez dominada, a água deixa então de ser um empecilho para o estabelecimento da cidade e passa a ser um elemento fundamental para a manutenção de seu funcionamento, já que se torna responsável pela limpeza do espaço construído graças às dinâmicas das marés do Adriático que renovam o corpo hídrico dos canais duas vezes ao dia. 



Essa empreitada de engenharia que rendeu aos venezianos a transformação de um pântano em um exemplar único de arquitetura levou alguns séculos, e evidentemente a história da cidade se confunde com as possibilidades e estratégias encontradas para lidar com o ambiente natural na qual se encontra e seu elemento de presença mais forte, a água, que de tempos em tempos se coloca como questão a ser enfrentada. Hoje em dia não é diferente. Mais um capítulo dessa relação aparece como problema para a manutenção do espaço construído da cidade que, cerca de 100 vezes por ano, precisa lidar com a ocorrência da acqua alta.



Trata-se do fenômeno de movimentação de águas do Adriático que, a partir de uma combinação de fatores como a dinâmica das marés e o vento que sopra em direção à laguna, arrasta um volume de água considerável dos canais para dentro da terra seca. Essa presença agressiva da água, e mais do que isso, do sal, é o principal fator de degradação dos edifícios antigos presentes na cidade, que atualmente busca na tecnologia e no desenvolvimento da química respostas para conter os efeitos devastadores que se manifestam nas paredes venezianas. E não só o aspecto físico e químico da presença da água tem significado uma questão para a cidade atualmente; do ponto de vista político, um dos grandes embates colocados em pauta pela população nativa, refere-se à permissão concedida pelo Estado para o trânsito de grandes navios pela laguna acarretando uma série de danos ambientais e acelerando processos de degradação do espaço habitado de Veneza.



Essa breve narrativa da história de uma cidade que, ao mesmo tempo, tem uma relação de conflito e dependência com a água mostra que Veneza é um caso de interesse que transcende uma dimensão romantizada desse famoso destino turístico. Trata-se de uma história da técnica, da estratégia, da resistência, um exemplo potencializado do antagonismo natureza e cultura ocupando um espaço comum. A história de um lugar que coloca seus visitantes e habitantes sobre um território construído, forjado pelo homem e ocupado por ele em uma constante necessidade de domar a natureza. A história de uma cidade versus a água, e tudo o que isso pode significar.



Nossa #DicaDeLeitura




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Autor: Julia Brant, para Archdaily, publicado originalmente em 21 de janeiro de 2019 e atualizado em 3 de fevereiro de 2020. 

Imagens: Reprodução/Divulgação.